quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Entrevista da fotógrafa Nan Goldin ao Estadão

A empresa Oi Futuro vetou a exposição da fotógrafa por considerar a série A Balada da Dependência Social imprópria, o que gerou grande repercussão na internet, principalmente da comunidade artística e reacendeu o debate em torno dos limites da arte.

Por Roberta Pennarfort Íntegra aqui


O veto à sua mostra está tendo grande repercussão na comunidade artística do Brasil. Um dos pontos levantados diz respeito à ingerência das empresas privadas em questões artísticas. Você considera isso perigoso?

É perigoso. As grandes empresas são conservadoras por natureza. A política delas não é a mesma que nós artistas apoiamos. Em muitos países exposições são, em sua maior parte, financiadas por essas grandes empresas, o que pode ser um problema. É responsabilidade do artista lutar contra qualquer pressão que possa limitar sua liberdade de expressão. A censura começou a se tornar um problema enorme no fim dos anos 80, com Robert Mapplethorpe e Andres Serrano (artistas que enfrentaram problemas de financiamento por trabalharem com imagens consideradas indecentes). Foi aí que ficou claro que os que tinham o dinheiro tinham o poder de controlar o que estava sendo mostrado.



Então qual seria a solução?

Depois que a conscientização cresceu, por conta desses dois casos, os artistas se tornaram mais ativos politicamente, forçando museus a mudar os programas que excluíam pessoas de cor, mulheres e gays. Eu, por exemplo, me recusei a assinar um compromisso em Nova York em 1989 de não fotografar mais os gays e de não fazer qualquer tipo de trabalho voltado à sexualidade. Com isso, não recebi financiamento.



Por que razão, mais de 20 anos depois de sua primeira exibição, "A Balada" ainda provoca reações fortes assim, na sua opinião?

Mas não provoca, em lugar algum. Não tenho esse problema há muitos anos. O trabalho já foi aceito como uma obra de arte importante. Outras coisas aconteceram e eu fui censurada, mas "A Balada", não.


Como você reagiu ao que houve agora no Oi Futuro?

Fiquei chocada. O Brasil é percebido como um país socialmente livre, de pessoas sem problemas com o corpo, então foi chocante.



Você pensa em não vir mais?

Penso. Ainda não decidi, não posso responder. O apoio da comunidade artística brasileira me tocou, e isso me dá vontade de ir. O que eu sei é que a exposição vai acontecer, em fevereiro. Iria em janeiro, mas não sei como me sinto sobre isso tudo.



O cancelamento suscitou a discussão sobre as fronteiras da arte. Essa questão ainda se justifica, a seu ver?

A arte deve empurrar as fronteiras, essa é a sua natureza, é uma das razões pelas quais a arte precisa existir. O papel da arte é questionar, seja ela conceitual, experimental ou política. Tem que ser radical, seja questionando a sociedade, a diferença de gêneros. Não deveria ser limitada por fontes de financiamento nem pelo mercado, nem ter de pensar no status quo. Mas tudo é limitado pela questão do dinheiro. Não é o que a arte deve ser. Se a arte é controlada pelo mercado, como parece ter sido o caso, ela se compromete, e isso tira sua integridade.
As fotos com as crianças são consideradas problemáticas, porque feririam o Estatuto da Criança e a Adolescente do Brasil. Ninguém me explicou até agora: do que trata a legislação?


É uma lei protetiva específica, que existe há 20 anos e que proíbe a exposição de menores a cenas tidas como pornográficas.

Uau, eu não sabia... Essa lei funciona? Numa sociedade com tantas crianças na rua, que têm de fazer de tudo para sobreviver? Eu já fui ao Brasil três vezes. Soube que houve um massacre pela polícia quando as crianças dormiam (chacina da Candelária, em 1993). Elas não estão recebendo apoio. Alguns artistas apoiam, como Carlinhos Brown, com seu projeto com música. Não faz qualquer sentido. Estão criando problema com fotos de crianças que são filhos de amigos meus há 20 anos, que estão num ambiente acolhedor e amoroso, onde há sexualidade, enquanto há crianças na rua, se prostituindo e fumando crack. Qual é o problema mais sério? Ninguém pode apontar uma foto minha em que a criança não sabia que estava sendo fotografada, ou que esteja sofrendo abuso.


Como você vê essas fotos hoje, que relação afetiva tem com estas imagens?

As pessoas retratadas se orgulham de fazer parte de "A Balada". As crianças que hoje são adultas não se arrependem. Nenhuma delas. Uma ou outra pessoa se incomoda ao ver seu passado mostrado, e nesse caso não incluo mais no slide show. Antes de um livro, ligo para todos os que ainda estão vivos (vários morreram em decorrência da epidemia de Aids dos anos 80) para ter certeza de que eles querem estar no livro. A minha integridade é uma das coisas mais fortes da minha vida e no meu trabalho. É muito fácil explorar pessoas com a fotografia.


Para você, o que significa este episódio?

O mundo está regredindo. A tecnologia está tirando das pessoas as emoções reais. Não sei como isso se reflete nessa situação, mas vejo que o mundo é totalmente diferente daquele em que eu cresci. Que bom que eu estava viva nos anos 60, 70 e 80, porque isso significa que eu não cresci orientada por um computador.

Nas redes sociais, questiona-se o uso do termo "censura".
Em inglês, a palavra é essa. Talvez não o seja no contexto brasileiro, ou da Argentina ou da Espanha, que tiveram ditaduras, talvez pareça exagerado. Mas para mim, que venho de uma sociedade supostamente livre e democrática, a palavra é exatamente essa. As pessoas estão olhando preto no branco, não estão vendo as nuances dessa história, o que é perigoso.


Os artistas estão ironizando o fato de o "censor" se chamar Oi Futuro.

É um pouco assustador. O futuro já parecia ruim o suficiente.

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