segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Sete desejos - Alceu Valença

Foto da internet



Recomeçando das cinzas
Eu faço versos tão claros
Projeto sete desejos
Na fumaça do cigarro

Eu penso na blusa branca de renda
Que dei pra ela
Na curva de suas ancas,
Quando escanchada na sela

Lembro um flamboyant vermelho
No desmantelo da tarde
A mala azul arrumada
Que projetava a viagem

Recomeçando das cinzas
Vou recompondo a paisagem
Lembro um flamboyant vermelho
No desmantelo da tarde

E agora, penso na réstia
Daquela luz amarela
Que escorria no telhado
Pra dourar os olhos dela

Recomeçando das cinzas
Vou renascendo pra ela
E agora penso na réstia
Daquela luz amarela

E agora penso que a estrada
Da vida tem ida e volta
Ninguém foge do destino
Esse trem que nos transporta

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tentação - Clarice Lispector





Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás

sábado, 10 de dezembro de 2011





"Hermeto, você é música". Foi o que eu disse pra ele no final do show. Esperamos o fim da apresentação atrás do palco. Quando ele saiu, eu estava com a câmera na mão, pronta pra tentar uma foto. Fomos surpreendidos por um show de simpatia e de atenção. Depois de uma apresentação de mais de uma hora, Hermeto fez uma roda com essas pessoas que como eu esperavam por ele, tocou mais um pouco, tirou várias fotos, deu vários autógrafos e nos falou muito. Sobre amor, sobre música e, principalmente, nos mostrou como se faz tudo isso com muito amor. Hermeto é música, vibra em outra frequência, Hermeto não pertence a esse mundo.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

“A vida é muito bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege"
                                                 

                                       Adélia  Prado - O Pelicano                             

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Das mudanças na fronte (ou sobreamar)

Cortou os cabelos e a testa ficou aparente. A partir disso, algo nele ficou irreconhecível. Talvez nem fosse ele e senti medo. A intimidade que compartilhávamos era irresistível.  Como foi dolorido olhar para ele e ver reluzente testa. Falo dessas relações que se vive de maneira muito intensa. Engana-se quem pensa ser fácil aceitar essas sutis mudanças. Era inevitável que ele perdeu algo muito dele, algo que também era muito meu. Acontecia assim com a gente, não sabíamos muito sobre o que era próprio de um ou de outro e aquela testa evidentemente não era dele e nem minha.
Ria dele, era como uma ginasial desdenhando do amor. Havia medo, mas não houve precisão de sua localidade. Talvez dos passados, traçados nas linhas da testa. Ou então, era apenas a imensidão do amor, maior que eu, que ele ou que os passados. Fiquei atônita, havia algo que não se perdia entre ele e eu e era próprio de cada um, havia um passado. O medo aumentou minhas olheiras e a noite transcorreu fria, com um corpo que já não era o dele ao lado de um corpo meu alheio e aquela testa, cheia de marcas estranhas que guardava em suas linhas histórias e amores, ele e ela, não eu.
A voz traria de volta a intimidade e a imensidão negada dessa relação, preferi então calar. Preferi fingir que não havia testa, noite, corpos e amor. Mas o telefone no meio da tarde trouxe sua voz e tudo que é tão nosso e tão maior que as marcas do passado. Não pude negar que ele era o mesmo, falávamos um ao outro com extrema sinceridade, sorrimos com nossas vozes e esqueci.  O passado tem de ser só isso, uma linha na testa, uma antiga fotografia empoeirada, um esbarrar-se na rua sem afeto.
E a história tente a terminar assim, acabaremos embriagados, derramando declarações. Imunes a ausência de cachos que um dia nos escondeu sua testa. Seremos os mesmos refletidos na escuridão dos olhos, com os corpos unidos e os passados esquecidos no fundo de qualquer gaveta velha.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Entrevista da fotógrafa Nan Goldin ao Estadão

A empresa Oi Futuro vetou a exposição da fotógrafa por considerar a série A Balada da Dependência Social imprópria, o que gerou grande repercussão na internet, principalmente da comunidade artística e reacendeu o debate em torno dos limites da arte.

Por Roberta Pennarfort Íntegra aqui


O veto à sua mostra está tendo grande repercussão na comunidade artística do Brasil. Um dos pontos levantados diz respeito à ingerência das empresas privadas em questões artísticas. Você considera isso perigoso?

É perigoso. As grandes empresas são conservadoras por natureza. A política delas não é a mesma que nós artistas apoiamos. Em muitos países exposições são, em sua maior parte, financiadas por essas grandes empresas, o que pode ser um problema. É responsabilidade do artista lutar contra qualquer pressão que possa limitar sua liberdade de expressão. A censura começou a se tornar um problema enorme no fim dos anos 80, com Robert Mapplethorpe e Andres Serrano (artistas que enfrentaram problemas de financiamento por trabalharem com imagens consideradas indecentes). Foi aí que ficou claro que os que tinham o dinheiro tinham o poder de controlar o que estava sendo mostrado.



Então qual seria a solução?

Depois que a conscientização cresceu, por conta desses dois casos, os artistas se tornaram mais ativos politicamente, forçando museus a mudar os programas que excluíam pessoas de cor, mulheres e gays. Eu, por exemplo, me recusei a assinar um compromisso em Nova York em 1989 de não fotografar mais os gays e de não fazer qualquer tipo de trabalho voltado à sexualidade. Com isso, não recebi financiamento.



Por que razão, mais de 20 anos depois de sua primeira exibição, "A Balada" ainda provoca reações fortes assim, na sua opinião?

Mas não provoca, em lugar algum. Não tenho esse problema há muitos anos. O trabalho já foi aceito como uma obra de arte importante. Outras coisas aconteceram e eu fui censurada, mas "A Balada", não.


Como você reagiu ao que houve agora no Oi Futuro?

Fiquei chocada. O Brasil é percebido como um país socialmente livre, de pessoas sem problemas com o corpo, então foi chocante.



Você pensa em não vir mais?

Penso. Ainda não decidi, não posso responder. O apoio da comunidade artística brasileira me tocou, e isso me dá vontade de ir. O que eu sei é que a exposição vai acontecer, em fevereiro. Iria em janeiro, mas não sei como me sinto sobre isso tudo.



O cancelamento suscitou a discussão sobre as fronteiras da arte. Essa questão ainda se justifica, a seu ver?

A arte deve empurrar as fronteiras, essa é a sua natureza, é uma das razões pelas quais a arte precisa existir. O papel da arte é questionar, seja ela conceitual, experimental ou política. Tem que ser radical, seja questionando a sociedade, a diferença de gêneros. Não deveria ser limitada por fontes de financiamento nem pelo mercado, nem ter de pensar no status quo. Mas tudo é limitado pela questão do dinheiro. Não é o que a arte deve ser. Se a arte é controlada pelo mercado, como parece ter sido o caso, ela se compromete, e isso tira sua integridade.
As fotos com as crianças são consideradas problemáticas, porque feririam o Estatuto da Criança e a Adolescente do Brasil. Ninguém me explicou até agora: do que trata a legislação?


É uma lei protetiva específica, que existe há 20 anos e que proíbe a exposição de menores a cenas tidas como pornográficas.

Uau, eu não sabia... Essa lei funciona? Numa sociedade com tantas crianças na rua, que têm de fazer de tudo para sobreviver? Eu já fui ao Brasil três vezes. Soube que houve um massacre pela polícia quando as crianças dormiam (chacina da Candelária, em 1993). Elas não estão recebendo apoio. Alguns artistas apoiam, como Carlinhos Brown, com seu projeto com música. Não faz qualquer sentido. Estão criando problema com fotos de crianças que são filhos de amigos meus há 20 anos, que estão num ambiente acolhedor e amoroso, onde há sexualidade, enquanto há crianças na rua, se prostituindo e fumando crack. Qual é o problema mais sério? Ninguém pode apontar uma foto minha em que a criança não sabia que estava sendo fotografada, ou que esteja sofrendo abuso.


Como você vê essas fotos hoje, que relação afetiva tem com estas imagens?

As pessoas retratadas se orgulham de fazer parte de "A Balada". As crianças que hoje são adultas não se arrependem. Nenhuma delas. Uma ou outra pessoa se incomoda ao ver seu passado mostrado, e nesse caso não incluo mais no slide show. Antes de um livro, ligo para todos os que ainda estão vivos (vários morreram em decorrência da epidemia de Aids dos anos 80) para ter certeza de que eles querem estar no livro. A minha integridade é uma das coisas mais fortes da minha vida e no meu trabalho. É muito fácil explorar pessoas com a fotografia.


Para você, o que significa este episódio?

O mundo está regredindo. A tecnologia está tirando das pessoas as emoções reais. Não sei como isso se reflete nessa situação, mas vejo que o mundo é totalmente diferente daquele em que eu cresci. Que bom que eu estava viva nos anos 60, 70 e 80, porque isso significa que eu não cresci orientada por um computador.

Nas redes sociais, questiona-se o uso do termo "censura".
Em inglês, a palavra é essa. Talvez não o seja no contexto brasileiro, ou da Argentina ou da Espanha, que tiveram ditaduras, talvez pareça exagerado. Mas para mim, que venho de uma sociedade supostamente livre e democrática, a palavra é exatamente essa. As pessoas estão olhando preto no branco, não estão vendo as nuances dessa história, o que é perigoso.


Os artistas estão ironizando o fato de o "censor" se chamar Oi Futuro.

É um pouco assustador. O futuro já parecia ruim o suficiente.