sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Foi bom - Rubem Braga

Recebi sua carta com esse gosto de missiva, de coisa antiga e meiga, que para mim é seu gosto. Você rirá, tão bem instalada no mundo. Moderno você é, sabendo as coisas todas, já tendo lidado com gente de todos os vícios, conhecendo muitas receitas e todos os truques. Você sabe muito! Você é de uma geração de mulheres do Brasil que eu chamo de geração forte. Nem me digam que essas meninas que hoje começam a badalar por aí serão ainda mais fortes. Não sei. Conheço algumas, são diferentes; oscilando entre a análise de grupo e o sexo grupal, começam a  viver mais cedo, em todo caso me dão a inquieta impressão de que provam de tudo e não sabem de nada. Ah, minha amiga, que vontade de bater um papo longo com você, aquelas conversas de Ipanema, se lembra? — quando a tarde começava a descer e o rush dos pássaros sobre os terraços, ao longo do mar, passando com tanta pressa do Leblon para o Posto Seis nos fazia
pensar, meio tristes, que a noite não tardaria a chegar e breve seria a hora de você sair, me mandar um último sorriso antes de dobrar a esquina para pegar seu carrinho. Desculpe, agora que comecei a lembrar estou com saudade de tudo, até de seu carrinho — ah! nosso tempo era bom. Era bom.
No fundo é isto apenas que sua carta diz: era bom; foi bom. O que eu acho antigo e meigo é você ter me escrito apenas para dizer isto, e dizer com simplicidade de alma, sem remorso nem aflição: foi bom. Foi bom talvez porque, para começo de conversa, não aborreceu ninguém. Não quisemos que ninguém nunca soubesse nada — para, nem por acaso, ferir ninguém. É na verdade muito bom, saber que em um mundo de tanta tristeza nosso pequeno mundo conseguiu existir sem fazer triste ninguém, como se o pequeno apartamento boiasse em uma nuvem dourada, longe de tudo e de todos... pois sim, você dirá rindo, e aquele susto quando eu perdi a chave do carro! E aquele nosso conhecido que estava no bar da esquina — e aquela
amiga com quem eu esbarrei na calçada — e aquele seu amigo que bateu na porta um minuto depois de eu chegar?
É verdade, houve algum susto e perigo — mas quanto cigarro fumado com sossego, também! Quanta conversa comprida, largada, íntima, sem astúcia nem farol, nenhum de nós dois fingindo de inteligente nem de bacana — acho que tudo foi tão bom porque eu não queria mais nada de você e você não esperava mais nada de mim, nosso amor era uma estima — bem aconchegada, é claro, mas uma grande estima de corpo e alma, acho que pouco ou nada falamos de amor, e o fizemos bastante, não é? E nos amamos com uma certa honestidade, não foi? Ah, eu sou homem decente, eu sou de uma boa família de Cachoeiro de Itapemirim, e você para mim é a imagem mesma da mulher decente — vamos falar bem de nós dois? Merecemos. Nesse caso, pelo menos, um em relação ao outro, merecemos. Fomos bons. Foi bom. Muito obrigado pela cartinha. Adeus.
Maio, 1962

Um comentário:

  1. AAAAAAAMO Rubem Alves!
    Foi uma das minhas melhores descobertas literárias nos últimos dois ou três anos...
    Belo texto!

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