quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O Encontro - Luís Fernando Veríssimo

Ela o encontrou pensativo em frente aos vinhos importados. Quis virar, mas era
tarde, o carrinho dela parou junto ao pé dele.  Ele a encarou, primeiro sem expressão,
depois com surpresa, depois com embaraço, e no fim os dois sorriram. Tinham estado
casados seis anos e separados, um. E aquela era a primeira vez que se encontravam
depois da separação. Sorriram e ele falou antes dela; quase falaram ao mesmo tempo.
- Você está morando por aqui?
- Na casa do papai.
Na casa do papai! Ele sacudiu a cabeça, fingiu que arrumava alguma coisa dentro
do seu carrinho - enlatados, bolachas, muitas garrafas -, tudo para ela não ver que ele
estava muito emocionado.
Soubera da morte do ex-sogro, mas não se  animara a ir ao enterro. Fora logo
depois da separação, ele não tivera coragem  de ir dar condolências formais à mulher
que, uma semana antes, ele chamara de vaca. Como era mesmo que ele tinha dito? "Tu
és uma vaca sem coração!" Ela não tinha nada de vaca, era uma mulher esbelta, mas
não lhe ocorrera outro insulto. Fora a última palavra que lhe dissera. E ela o chamara de
farsante. Achou melhor não perguntar pela mãe dela.
- E você? - perguntou ela, ainda sorrindo.
Continuava bonita.
- Tenho um apartamento aqui perto.
Fizera bem em não ir ao enterro do velho. Melhor que o primeiro reencontro fosse
assim, informal, num supermercado, à noite. O que é que ela estaria fazendo ali àquela
hora?
- Você sempre faz compras de madrugada?
Meu Deus, pensou, será que ela vai tomar a pergunta como ironia?
Esse tinha sido um dos problemas do casamento, ele nunca sabia como ela ia
interpretar o que ele dizia. Por isso, ele  a chamara de vaca no fim. Vaca não deixava
dúvidas de que ele a desprezava.
- Não, não. É que estou com uns amigos lá em casa, resolvemos fazer alguma
coisa para comer e não tinha nada em casa.
- Curioso, eu também tenho gente lá em casa e vim comprar bebidas, patê, essas
coisas.
- Gozado.
Ela dissera uns amigos. Seria alguém  do seu tempo? A velha turma? Ele nunca
mais vira os antigos amigos do casal. Ela sempre fora mais social do que ele. Quem sabe era um amigo? Ela era uma  mulher bonita, esbelta, claro que podia ter namorados, a
vaca.
E ela estava pensando: ele odiava festas, odiava ter gente em casa. Programa,
para ele, era ir para a casa do papai jogar buraco. Agora tem amigos em casa. Ou será
uma amiga? Afinal ele ainda era moço... deixara a amiga no apartamento e viera fazer
compras. E comprava vinhos importados, o farsante.
Ele pensou: ela não sente minha falta. Tem a casa cheia de amigos. E na certa viu
que eu fiquei engasgado ao vê-la, pensa que eu sinto falta dela. Mas não vai ter essa
satisfação, não senhora.
- Meu estoque de bebidas não dura muito. Tem sempre gente lá em casa - disse
ele.
- Lá em casa também é uma festa atrás da outra.
- Você sempre gostou de festas.
- E você, não.
- A gente muda, né? Muda de hábitos...
- Tou vendo.
- Você não me reconheceria se viesse viver comigo outra vez.
Ela, ainda sorrindo:
- Que Deus me livre.
Os dois riram. Era um encontro informal.
Durante seis anos tinham se amado muito. Não podiam viver um sem o outro. Os
amigos diziam: esses dois, se um morrer o outro se suicida. Os amigos não sabiam que
havia sempre uma ameaça de mal-entendido com eles. Eles se amavam, mas não se
entendiam. Era como se o amor fosse mais forte porque substituía o entendimento, tinha
função acumulada. Ela interpretava o que ele dizia, ele não queria dizer nada.
Passaram juntos pela caixa, ele não se ofereceu para pagar,  afinal era com a
pensão que ele Ihe pagava que ela dava festas para uns amigos. Ele pensou em
perguntar pela mãe dela, ela pensou em perguntar se ele estava bem, se aquele
problema do ácido úrico não voltara, começaram os dois a falar ao mesmo tempo, riram,
depois se despediram sem dizer mais nada.
Quando ela chegou em casa ainda ouviu a mãe resmungar, da cama, que ela
precisava acabar com aquela história de  fazer as compras de madrugada. Que ela
precisava ter amigos, fazer alguma coisa, em vez de ficar lamentando o marido perdido.
Ela não disse nada. Guardou as compras antes de ir dormir.
Quando ele chegou ao apartamento, abriu uma lata de patê, o pacote de bolachas,
abriu o vinho português, ficou bebendo e comendo sozinho, até ter sono e aí foi dormir.
Aquele farsante, pensou ela, antes de dormir.
Aquela vaca, pensou ele, antes de dormir.

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